domingo, 30 de dezembro de 2012

Classic Albums: Deep Purple - Os 40 anos do Made In Japan



Após o lançamento do clássico Machine Head e de três anos de longas turnês ininterruptas, em Agosto de 1972 pela primeira vez o Deep Purple iria se apresentar no Japão, depois de quatro passagens pelos Estados Unidos, duas pela Europa e muitas datas no Reino Unido, tudo isso somente naquele ano. O palco havia se tornado a casa da banda e era ali que eles conseguiam definir sua identidade musical, especialmente na fase Mk II, com Ian Gillan (vocal), Ritchie Blackmore (guitarra), Ian Paice (bateria), Jon Lord (teclados) e Roger Glover (baixo). A banda estava mais entrosada do que nunca e já haviam percebido que não existia razão para ensaios antes das apresentações, já que assim eles se sentiam mais livres e soltos para improvisos e sabiam que essa era a sua marca registrada nos palcos, de maneira que a cada noite eles tocavam praticamente as mesmas músicas, porém de modo diferente.

Para aquela turnê específica pelo Japão, um executivo da Warner Brothers, gravadora da banda na época, sugeriu que eles gravassem um álbum ao vivo para distribuição exclusiva para o mercado japonês. Tal prática era muito comum na época, já que desde os anos 60 o mercado fonográfico japonês tinha o costume de lançar discos ao vivo das bandas internacionais que passavam por ali, de modo a impulsionar as vendas do grupo no país e servir como um suvenir para os fãs.

Embora os músicos nunca tivessem gravado nada ao vivo até então, eles pareceram entusiasmados, porém apreensivos com a ideia, como Roger Glover lembrou anos mais tarde: “Nós nunca tínhamos feito isso antes. Na verdade, nem fazíamos ideia de como soávamos ao vivo, já que somente tínhamos ouvido alguns bootlegs de qualidade bem amadora antes.”.

Enfim, o grupo aceitou a proposta de gravar o álbum ao vivo desde que fossem preenchidos alguns requisitos: Martin Birch, produtor de confiança da banda deveria estar por trás dos botões da gravação, bem como deveria aprovar os equipamentos fornecidos pelos japoneses; ainda, eles deveriam ter total controle artístico sobre a obra, de modo que primeiro eles gravariam e depois decidiriam se o álbum seria lançado ou não, dependo da sua qualidade. Sobre tal situação, Ian Paice relembra: “Nós dissemos que aceitaríamos somente se estivéssemos no controle. Primeiramente o material seria lançado somente do Japão, mas depois que ouvimos as fitas, pensamos ‘Espere, temos alguma coisa aqui...”. Com o contrato satisfazendo todas as condições da banda preenchido em mãos, eles voaram para a Terra do Sol Nascente.

Chegando ao aeroporto, todos ficaram surpresos com a receptividade dos centenas de japoneses que os aguardavam munidos de lembranças, flores e brinquedos. Quem mais ficou impressionado foi Roger Glover, que só deixou o local depois de assinar todos os itens que os japoneses levaram e fez questão de atender todos que o procuravam no lobby do hotel.

O grupo ainda não havia desfeito as malas e o produtor já estava de olho no equipamento de gravação. Ele examinou a unidade móvel de oito pistas que a Warner disponibilizou e logo percebeu que teria problemas, imaginando que devido às péssimas condições do equipamento, mal conseguiria gravar alguma música.

O primeiro show estava marcado para 15 de Agosto na casa Kosei Nenken Kaikan Hall, em Osaka. Com o passar dos anos o público japonês se tornou famoso por sua postura educada e contida diante das bandas, mas em 1972 o Purple não sabia o que esperar. Acostumados com a euforia da plateia ocidental,  a banda entra no palco e é recebida com curtos aplausos enquanto chegam aos seus instrumentos. Ian Gillan pega o microfone e já pronuncia o famoso “Good morning” para todos. Isso porque os shows no Japão se iniciavam muito cedo, este especificamente começava às 18:30, algo bem incomum para cultura ocidental, mas pelo menos lá todo mundo tinha condução pública na hora de voltar pra casa. Fica aí a dica para os produtores de shows brasileiros...



Nesse primeiro show, diante dessas várias circunstâncias inéditas, além de estarem gravando ao vivo pela primeira vez, a banda soa um pouco presa e nervosa. Quem deixou isso transparecer foi o errático Ritchie Blackmore, que irritado com sua performance quebrou sua guitarra ao final do show e jogou os  destroços de presente para a plateia. O que ele não sabia era que todos os seguranças que ficavam entre o público e o palco vestidos à paisana eram faixa preta em caratê. Assim que os fãs agarraram os pedaços da guitarra, os seguranças entraram imediatamente no meio da multidão para recuperá-los à força e devolvê-los ao guitarrista, que não parava de gritar “Eu não quero de volta! Eu não quero de volta!”, mas era em vão. Os seguranças devolviam os restos do instrumento para ele e o saudavam inclinando a cabeça, como os orientais costumam fazer. Ian Paice, que via tudo por trás da bateria, levantou os ombros sem entender nada do que estava acontecendo. Jon Lord foi o primeiro que começou a rir, mas Ritchie não estava achando nada engraçado. Os seguranças só entenderam o intuito do guitarrista depois de repetir a mesma cena por mais duas vezes.

O primeiro show definitivamente não agradou à banda, tanto que eles incluíram somente Smoke on the Water na edição final do álbum, simplesmente por ser a única versão dos três shows que Blackmore tocou o riff inicial de forma correta. Porém, eles não esquentaram a cabeça. Ainda havia mais dois shows para a banda detonar tudo em cima do palco.

Para esfriar os ânimos após a frustração da primeira noite, a banda decidiu visitar as bathhouses, ou “casas de banho” japonesas. Gillan relambra o momento: “Existiam algumas casas em que, se você fosse uma banda de rock visitante na cidade, eles faziam você se sentir como um rei por uma noite, com muitas garotas em volta.”. Segundo um artigo da época, os detalhes dessa noite poderiam encher uma dúzia de livros sobre sacanagem. Não é à toa que a banda presta suas devidas homenagens às gueixas em Womam From Tokyo, lançada como faixa de abertura do álbum de 1973 Who Do We Think We Are. Obs: as bathhouses foram fechadas para estrangeiros depois da disseminação do vírus da AIDS no início dos anos 80.

No segundo show, marcado para o dia seguinte na mesma cidade e arena, a banda já estava mais relaxada, conforme relatou Glover: “Nós já não estávamos mais nem aí. Nos esquecemos de todo o nervosismo e deixamos acontecer. É por isso que a maioria das músicas do álbum vem da segunda noite.”. Após uma apresentação enérgica e brilhante na segunda noite em Osaka, todos rumaram para o derradeiro show em terras nipônicas.

Marcado para 17 de Agosto em Tóquio, no lendário Budokan Nippo Hall, o Deep Purple fez o melhor show da turnê com direito a momentos emocionantes, como os 13 mil espectadores cantando a letra de Child In Time. O problema em relação a esse show ficou por conta da acústica da casa, que não ajudou Martin Birch e tornou a gravação muito precária para ser incluída no álbum oficial.

O setlist das apresentações foi o mesmo, com Highway Star, Child In Time, Smoke On The Water, The Mule, Strange Kind of Woman, Lazy e Space Truckin’, alternando apenas o encore com Black Night, Speed King e/ou Lucille.

De volta para a Inglaterra e para deleite de Martin Birch e banda, as gravações dos show de Osaka ficaram ótimas e um pouco a desejar no show de Tóquio. Os únicos integrantes da banda que ficaram ao lado do produtor na mixagem foram Roger Glover e Ian Paice, sendo que o resto da banda nem deu as caras no estúdio. Nesse processo, eles tentaram deixar o som mais limpo e livre de truques quanto fosse possível. Segundo Glover, o álbum conta com apenas um overdub, conforme ele explica: “Foi no final do primeiro crescendo de Child In Time, quando a música para e há um silêncio absoluto por um momento. Nós pensamos que aquilo não soava muito ao vivo, então adicionamos um barulho de plateia. Mas o resto foi deixado exatamente como tocamos nos shows.”. Depois de ouvido o material resultante da mixagem, todos perceberam que seria uma tolice deixar aquele material restrito ao mercado japonês. “Nós dissemos para a gravadora: ’Isso é bom pra caralho. Nós queremos isso lançado agora e em todo lugar!’” disse Glover.

O único integrante que ainda parece não ter ficado satisfeito com o resultado final foi o sempre autocrítico Ian Gillan, que justifica: “Na primeira noite todos estavam cansados pois havíamos viajado durante todo o dia anterior da Inglaterra para o Japão. A última noite foi a melhor, mas nós não conseguimos aproveitar o material devido à péssima acústica do lugar, então nós ficamos com  a maior parte da segunda noite. Eu tinha acabado de passar por uma crise de bronquite e não conseguia me convencer em relação ao meu desempenho.”. Apesar de tudo, Gillan reconhece: “Considerando que é ao vivo, a qualidade é fenomenal. As fitas foram deixadas intactas e não foram adicionados overdubs ou nada parecido. É decepcionante lançar algo em que você tenha vergonha da própria performance, mas tive que pensar no que seria melhor para a banda”.


O nome do álbum surgiu de uma ironia aos produtos japoneses da época. Em 1972, o Japão ainda estava se reconstruindo da guerra e sua indústria era sinônimo de produtos baratos e de qualidade duvidável. “Na Inglaterra, na época, a frase ‘Made In Japan’ remetia a algo barato e sem qualidade. O título veio da nossa interpretação dessa frase. Nós achávamos que o que nós estávamos fazendo era barato e podre, porque era só um álbum ao vivo. Todo mundo nos dizia que era uma perda de tempo.”, lembra Gillan.  

Conforme explicado anteriormente, a ideia inicial era lançar o disco somente no mercado japonês, então coube à própria gravadora japonesa cuidar da parte gráfica do LP que sairia por lá. A capa do disco japonês consistia numa bela foto aérea do grupo tocando no Budokan Nippo Hall em Tóquio. A parte interna era composta de um punhado de fotos coloridas tiradas ao vivo que, por alguma razão até hoje inexplicável, capturavam shows realizados em Julho de 1972 no Rainbow Theatre em Londres ao invés de fotos dos shows do Japão. Como sempre, a edição trazia as letras em inglês e japonês, além de uma mensagem curta de cada membro da banda escrita à mão para acompanhar suas respectivas fotos. A cereja do bolo das primeiras cópias era um negativo colorido de 35mm da banda em cima do palco, para que os fãs pudessem revelar e ter uma fotografia impressa do Purple em casa. Além de tudo, o título do álbum saiu como Live in Japan, para confundir a cabeça do fãs que achavam que se tratava de um show diferente por conta do nome do LP não ser o Made In Japan lançado mundialmente, fato erroneamente confirmado pelos importadores de discos para encherem seus bolsos de dinheiro. Na verdade, o conteúdo das edições era rigorosamente o mesmo, contendo um compilação das melhores performances ao longo das três noites.

Para o resto do mundo, a capa teve o famoso design simplório desenvolvido por Roger Glover que todos conhecemos com uma foto da banda em cima do palco.

A banda ainda decidiu que embora o disco fosse duplo, ele deveria ser lançado pelo preço de simples, já que achavam injusto os fãs pagarem um preço maior por músicas que já haviam sido lançadas anteriormente em álbuns de estúdio.

Impulsionadas pelo preço reduzido, as vendas tiveram sucesso imediato, alcançando o 16° lugar nas paradas britânicas. O mercado norte-americano resolveu esperar o lançamento de Who Do We Think We Are em 1973 para soltar o disco ao vivo. Porém, ao perceber o sucesso que ocorria na Inglaterra e vendo as lojas de discos repletas de importados, a Warner resolveu lançar o ao vivo ainda antes do fim de 1972, o que lhe rendeu bons frutos com as vendas do natal daquele ano. Na américa, eles ainda lançaram um single de Smoke On The Water que continha a versão ao vivo e de estúdio, o que ajudou o Made In Japan a chegar no top ten.

Em relação às músicas realizadas no encore, Black Night foi lançada como lado B na Europa e como lado A no Japão, mas as outras duas músicas ficaram guardadas por um bom tempo. Anos mais tarde, na versão dupla remasterizada do CD, foram incluídas as encores contando com Black Night, Speed King e Lucille, sendo as duas primeiras retiradas do show de Tóquio e a última da segunda noite em Osaka.



Um fato que aguçava a curiosidade de todos era se realmente as faixas escolhidas eram as melhores das três apresentações. Para responder a essa questão, em Juho de 1993, como parte da comemoração dos 20 anos do clássico, todas as fitas originais dos shows foram resgatas remasterizadas no estúdio Abbey Road. Veio ao mundo a luxosa versão tripla intitulada Live In Japan contendo os três shows completos, à exceção de Smoke On The Water da primeira noite e The Mule da última, sendo que ambas podem ser conferidas na compilação do Made In Japan original. Assim, sobrou espaço para incluir alguns encores: Speed King, embora retirada do primeiro show em Osaka, foi incluída no final do show de Tóquio; dos três takes de Black Night, a versão lançada como single veio de Tóquio e pode ser encontrada no álbum “Singles A’s & B’s”; dos outros dois takes que sobraram, foi incluído o da primeira noite em Osaka. Lucille ficou de fora, mas pode ser conferida na versão dupla e remasterizada do disco.



Em dezembro de 1972, quando o álbum foi lançado originalmente, já existiam alguns álbuns ao vivo memoráves: Get Yer Ya-Ya`s Out! dos Stones, Live At Leeds do The Who, o brilhante At Fillmore East do Allman Brothers, além de faixas ao vivo em discos do Cream e Faces, mas no Made In Japan havia algo a mais que faz com que este seja considerado por muitos não somente o melhor álbum ao vivo da época, mas sim de todos os tempos. O Deep Purple nunca soou tão agressivo, inspirado e, de certa forma, descompromissado ao longo de sua longa trajetória. Não havia limites para sua música: “Não existia gênero musical”, disse Gillan. “Não existiam barreiras. Você poderia ir para onde queria”, referindo-se à direção musical do grupo.

O que podemos ouvir em Made In Japan é o auge da fase mais clássica da banda que serviu como um dos pilares para tudo o que conhecemos hoje como Hard Rock e Heavy Metal. Do “Good Morning”em Highway Star à versão apocalíptica de quase 20 minutos de Space Truckin’, passando pela versão definitiva de Child In Time, o clássico Smoke On The Water, o inspiradíssimo solo de bateria de Ian Paice em The Mule, a troca de frases e improvisos entre guitarra e vocal em Strange Kind Of Womam e a fluidez com que surgem os solos em Lazy, unidos pela sintonia de todos em sua melhor forma, fazem com que este seja o álbum ao vivo perfeito. As roupagens que as músicas trazem quando comparadas com as versões em estúdio, são como comparar uma TV muda em preto e branco a uma colorida em HD. Ian Paice reconhece o feito: “São as melhores versões já registradas num álbum. Acho que a atmosfera de estúdio não agrada ninguém na banda.”, revelando a faceta de “banda ao vivo” que eles possuem.

Creio que somente uma frase pode definir melhor o disco: “Superb. Absolutely superb.”